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A nova dinâmica do choro paulista

Por Daniel Brazil - 11/10/2013

Quem viveu a cena musical brasileira nas décadas de 70 e 80, deve se recordar, se o “disco rígido” não estiver muito cheio. Choro era coisa de velho, de roda de aposentados em bares de periferia. Os poucos programas de rádio ou TV que apresentavam grupos de choro eram tidos como saudosistas e até mesmo decadentes.
É claro que havia grandes bambas ainda na ativa, mas defendiam o uisquinho das crianças acompanhando sambistas e cantores da MPB. Pegue uma faixa de Chico Buarque da época (como Meu Caro Amigo, de 76) e ouvirá craques como Dino 7 Cordas, Abel Ferreira, Altamiro Carrilho e Joel Nascimento mostrando como se toca um bom choro.
Em São Paulo, terra dos festivais que renovaram a música brasileira, a coisa foi ainda pior. Muito, como o 7 cordas Israel Bueno de Almeida, irmão do bandolinista Isaías, tocaram por anos em conjuntos de baile, em churrascarias, em festas de casamento, passando pela Jovem Guarda e os sucessos internacionais. Os que permaneceram fiéis ficaram relegados a uma quase secreta sociedade de amantes do choro, que se reuniam na loja de instrumentos musicais Contemporânea e em alguns endereços
O disco instrumental de Paulinho da Viola, Memórias Chorando (1976) foi um alento. Um artista de prestígio, sambista consagrado, dedicava um LP inteiro ao choro! Muitos jovens, até então amantes da MPB, passaram a prestar mais atenção nas joias ali reveladas. 
Em 1977, o I Festival Nacional do Choro Novo – Brasileirinho, tentou alavancar o gênero. Uma olhada nos 12 classificados mostra que ainda era coisa de veteranos: Valdir Azevedo, Altamiro, Abel Ferreira, Plauto Cruz, Conjunto Pacífico. O II Festival, denominado Carinhoso (1978), não alterou muito a faixa etária: K-ximbinho, Canhoto da Paraíba, Avena de Castro, Esmeraldino, Regional do Canhoto... No entanto, já se notava um avanço formal nas composições, uma ousadia maior, procurando alternativas. O choro Arabiando, do cavaquinhista Esmeraldino Lopes, foi fundamental para toda uma geração, com suas modulações, saltos melódicos e harmonia complexa. Em 1980 o pianista Laércio de Freitas lançou um disco com composições do autor, ampliando a influência deste mestre, que até hoje é menos tocado do que deveria, fora de São Paulo (Ao Nosso Amigo Esmê, Eldorado,1980).
E, dos anos 90 para a frente, as sementes plantadas por aqueles festivais começaram a germinar. Um batalhão de jovens instrumentistas começou a procurar partituras dos clássicos, estudar em academias, cavar espaço nos bares de música brasileira, formar novos grupos.
Fenômeno parecido ocorreu no Rio de Janeiro e em outros centros. Hoje, com o gênero reestabelecido, é possível contabilizar dezenas de grupos contemporâneos que se dedicam ao choro. Uns mais jazzísticos, outros mais tradicionalistas, muitos com composições próprias. Em São Paulo, bares como o Ó do Borogodó e o Cidão, na Vila Madalena, se tornaram pontos de referência e encontro de novos e veteranos.
Dessa mescla surgiram grupos com a curiosa característica de terem membros intercambiáveis. Um trio com CDs gravados, com a adição de mais um músico passa a ter outro nome, se troca o violonista já é um terceiro grupo com repertório diferente. E todos coexistem, se frequentam, tocam nos mesmos bares. Uma noitada de choro pode ser única, no sentido de que aquela formação não irá se repetir por um bom tempo.
Recentemente, dois destes grupos lançaram novas gravações, plenas de invenção. O primeiro é o Chorando as Pitangas (Um passeio na Benedito Calixto, Lua Music, 2013), onde o excepcional gaitista Vitor Lopes é acompanhado pelo talentoso 7 cordas Gian Correa e os craques Milton Mori (bandolim), Ildo Silva (cavaquinho) e Roberta Valente (pandeiro). Uma deliciosa coleção de choros que mesclam mestres como Pixinguinha (Pagão), Abel Ferreira (Haroldo no Choro e Luar de Coromandel), Maestro Carioca (Voltei ao Meu Lugar) e Ernesto Nazareth (Odeon, em solo de harmônica!), com obras de contemporâneos como César Camargo Mariano (Cristal), Zé Barbeiro (Tá Bravo!), Alessandro Penezzi (Pé de Amora) e dos próprios integrantes do grupo. Grande CD, descontraído e vibrante como uma tarde de sábado na Praça Benedito Calixto, ponto de encontro tradicional dos chorões paulistas.
O outro grupo em destaque é o Cadeira de Balanço, que surgiu no Ó do Borogodó como acompanhante da grande cantora Dona Inah. Nos intervalos instrumentais o sexteto punha todo mundo pra dançar, e começaram a montar repertório próprio. Com três afiados percussionistas, um flautista (Enrique Menezes, que também brinca no pífano), o cavaquinhista Henrique Araujo e o 7 cordas Gian Correa (olha ele aí de novo!), o grupo injeta juventude e criatividade em suas performances empolgantes. A diversidade rítmica explorada pelo naipe de percussão é um diferencial do grupo. O CD Bagunça Generalizada (Choro Music, 2013), tem o nome de uma composição do grande 7 cordas Zé Barbeiro, e também desfila vários compositores paulistas (Toninho Ferraguti, Nelson Ayres, Edson Alves), encerrando com uma faixa do fera Hamilton de Holanda.
A vitalidade do gênero em São Paulo não fica apenas nestes grupos. Tem muita gente boa por aí, esmerilhando na tripa, no couro e no canudo, como se dizia antigamente. É bastante comum vermos jovens instrumentistas de outros estados serem recebidos e ouvidos com atenção, em rodas memoráveis. Por se tratar de um gênero que não toca no rádio, criaram um circuito próprio, onde a apresentação ao vivo é fundamental, com todo o calor, camaradagem e desafio que o público espera. Público, aliás, que também rejuvenesce a cada dia. Felizmente.