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Não é fácil cantar Chico Buarque!

Por Daniel Brazil - 15/05/2007

Mônica Salmaso é, indiscutivelmente, uma bela cantora. Sua voz, suave e bem definida, se amolda a diversos gêneros, como já demonstrou em muitas gravações e apresentações. Da homenagem a Baden e Vinicius, nos Afro Sambas gravados com Paulo Belinatti, até as delicadas canções de Voadeira, Trampolim e Iaiá, passando pelos vocalises realizados com a Orquestra Popular de Câmara, sempre demonstrou ser artista curiosa, sem medo de experimentar, de buscar o novo.

Mas Mônica, para o bem e para o mal, tem algo de indiscutivelmente paulista, no sentido musical. Filha legítima daquele movimento que nos anos 80 foi chamado de vanguarda paulistana, privilegia a entonação exata, sem vibratos, sem derramamento emocional, revelando o esqueleto das canções sem a gordurinha das emoções baratas.

Vários músicos e compositores que fazem parte dessa irmandade estética possuem essa visão meio parnasiana do ofício. São músicos depurados, letristas quase-concretos, amantes da sílaba exata, da nota perfeita, da canção de câmara. Esta música paulista “moderna” ambiciona a exatidão jobiniana-gilbertiana da bossa nova dos anos 60, a nota exata do cool jazz de Chet Baker, e mantêm distância prudente de paulistas viscerais e emocionais como Adoniran Barbosa, Geraldo Filme ou Paulo Vanzolini.

Mônica Salmaso vinha, até aqui, se equilibrando com graça no fio quase invisível que separa a perfeição da frieza. Corajosa, resolveu dar um passo além e explorar o generoso latifúndio musical de Chico Buarque, um paulista/carioca que sempre esteve mais para a praia que para a garoa.

O CD Noites de Gala, Samba na Rua (Biscoito Fino, 2007) é uma inflexão na carreira da cantora. O encontro de seu perfeccionismo musical com a eruptiva genialidade buarqueana, infelizmente, deu chabu. Onde se esperava uma explosão de belezas nunca antes reveladas, encontramos um exercício de dissecação de cada canção, feita com tanto cuidado e exatidão que parecem uma aula de anatomia.

Mônica, com o apoio competente do Pau Brasil - grupo de músicos de primeira linha com excelente folha de serviços prestados à música instrumental brasileira – soa monocórdica, sem nuances. Arriscou demais em canções que já tinham um histórico de interpretações soberbas, como Beatriz (por Milton Nascimento) ou Quem Te Viu, Quem Te Vê (por Elis, Maria Bethânia ou o próprio Chico). Como é do seu feitio, buscou obras menos conhecidas, e caiu em peças menos representativas. Até uma obra-prima pouco divulgada, como O Velho Francisco, talvez a mais bela canção do disco, está por demais parecida com a versão gravada pelo seu quase-irmão musical Renato Braz, em 2002.

Não é fácil entender porque uma bela voz cantando belas composições pode não agradar. A impressão de que falta algo é inevitável. O que não deu certo, afinal?

Arrisco um palpite: Chico Buarque é herdeiro e ponto alto de uma tradição de música emotiva, sanguínea, ora apaixonada, ora raivosa, muitas vezes teatral, que exige um entrega do intérprete que vá muito abaixo da garganta.

Quando Mônica Salmaso canta Construção de forma fria, cartesiana, secundada pelos acordes econômicos do Pau Brasil, trai o sentido original da canção. O arranjo inesquecível do carioca/paulista Rogério Duprat para a canção de 1971, época braba da censura, repercute e amplifica o sentimento de angústia e desamparo da sofisticada letra, através de uma vertiginosa orquestração. Sentimos-nos diante de um dos grandes momentos da canção brasileira. Por que lhe tirar os andaimes, o cimento e os tijolos, e ficar só na planta, idéia plana da construção final?
Construção é sucedida, no disco, pela divertida Ciranda da Bailarina. Divertida? Alguém notou diferença de humor na interpretação de Mônica Salmaso? A mesma voz perfeitinha, a mesma entonação, sem aparentar um sorriso. É a isso que uma grande cantora, daquelas das quais se diz “usar a voz como um instrumento”, reduz uma canção? Serão só palavras entoadas melodicamente, sem outra preocupação com a letra além da pronúncia irrepreensível?

Nivelar Construção e Ciranda da Bailarina é sintomático. Sumiu o Chico engraçado, o Chico trágico, o Chico irônico, o Chico dolorido. Sobrou a canção parnasiana, bela como uma borboleta espetada no algodão. Sem vida. Uma canção dramática como Basta Um Dia, da peça Gota Dágua, é devidamente esterilizada de qualquer infecção emocional pela voz contida da cantora. Quem ouviu Bibi Ferreira se rasgando nos palcos, Clara Nunes no rádio, ou mesmo o autor cantando com o coração nas mãos, percebe a diferença.

Não queremos que Mônica Salmaso cante como uma Ângela Maria, Elizeth Cardoso ou Maria Bethânia, que fique claro. Inteligente e dotada de espírito crítico (leiam sua entrevista no site Gafieiras!), Salmaso vive o dilema de sua geração estética. Ama o samba de Cartola e de Noel, mas fica incomodada com o suor na cara, a veia saltada da garganta, o cheiro de quintal mijado que vem daquele tipo de música. Trata de sanear, higienizar, tornar fino aquele produto caseiro. Esteriliza e sofistica.

Um dos grandes méritos de Chico Buarque é justamente ter incorporado esses aromas à sua obra. Na sua voz, mesmo limitada, nos sentimos no mesmo andaime do operário em sua construção. Salmaso parece a arquiteta fina e chique que apenas folheia a revista onde aparece a obra do operário Chico. Beleza fria, flor de plástico inodora.

A lição do paulista Oswald de Andrade parece ter sido esquecida por Mônica e seus companheiros de viagem musical. Felizmente, ainda há tempo de corrigir o leme. Que nos encante com sua linda voz e sua bela presença de palco por muitos anos, mas que também destampe o pote da alma e se deixe contaminar pelas impurezas do mundo sem medo de parecer ridícula. Afinal, todas as canções de amor são ridículas, e não seriam canções de amor se não fossem ridículas.