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Leite Derramado: romance nascido da canção

Por Daniel Brazil - 20/08/2009

Chico Buarque de Holanda é o maior compositor brasileiro vivo. Poucos têm coragem de discordar. Sua vasta obra, original e finamente elaborada, dialoga com todas as formas da música popular brasileira, incorporando tradições, transformando ritmos e criando novas linhas poéticas.

Como se o formato canção estivesse esgotado e não comportasse mais sua criatividade, Chico passou para a literatura a partir dos anos 90. Inicialmente visto com desconfiança, pouco a pouco ganhou a confiança de críticos e leitores. Os romances viraram filmes, alguns se tornaram campeões de vendas, embora ainda fique a sensação de que o Chico escritor não atingiu o patamar alcançado pelo compositor.

Sua última obra, Leite Derramado, é um caso muito especial. Chico escreve cada vez melhor, formalmente falando. Há trechos lindos, onde a poesia aflora. Não se trata de uma história com começo, meio e fim, mas um conjunto de lembranças de um velho centenário, que atravessou o século XX participando da vida política e social do Rio de Janeiro. Sua memória se confunde, e as omissões, trocas, repetições e elipses jogam uma névoa de dúvidas sobre sua real biografia.

Curioso é notar que o próprio Chico Buarque já havia criado, de forma musical, um personagem muito parecido. Na canção O Velho Francisco, gravada em 1989 no disco Francisco, um velho internado num asilo rememora de maneira confusa (e poética) sua vida. O preto velho das estrofes embranquece (mas não totalmente) e se esparrama pelas 195 páginas do romance, lançado em 2008, agora como o decadente Eulálio d’Assumpção, filho de senador, de família outrora influente.

O velho Francisco diz: “Acho que fui deputado/ Acho que tudo acabou/Quase que já não me lembro de nada/ Vida veio e me levou”. Eulálio repete, com outras palavras, a mesma trajetória.

Na belíssima canção, que foi gravada por Renato Braz, Zé Luiz Mazziotti, Oswaldo Montenegro e Mônica Salmaso, além do próprio Chico, o personagem diz que “hoje é dia de visita/ vem aí meu grande amor”. As palavras iniciais do protagonista literário ecoam e amplificam a mesma esperança: “Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda de minha feliz infância, lá na raiz da serra”. Um novo amor impossível e uma origem rural comum ligam os dois velhos. Ou melhor, dá pistas de que talvez estejamos na presença do mesmo velho, confuso e solitário: “Freqüentei palácio sem fazer feio/ vida veio e me levou”.

Ler o romance dá uma idéia do esforço titânico do escritor Chico Buarque em ampliar os limites de sua obra musical, de originalidade inconteste. O criador corre o risco de se tornar um diluidor, enfrentando a própria sombra. E talvez este seja o desafio que o motiva.

Partir da literatura para chegar à música não é novidade para Chico. Em vários momentos exercitou esta transcriação, seja partindo de um poema de Drummond (Quadrilha), seja colocando melodias nas vidas severinas de João Cabral, seja recriando personagens de tragédias gregas, retirantes, malandros ou operários tipicamente brasileiros. Aqui, pela primeira vez, ele faz o caminho inverso.

É notório que Chico deu dimensões inéditas à mulher como personagem central de muitas de suas canções. Em Leite Derramado, a lembrança de uma mulher, Matilde, é recorrente, mas se oculta no passado. Quem está presente é a enfermeira que cuida de Eulálio, a quem ele propõe casamento. Para o velho Francisco da canção a mulher é anônima, mas também simboliza o único momento positivo da vida real, alívio para suas dores: “Ela vem toda de brinco/ vem todo domingo/ tem cheiro de flor”. Vida real? As mulheres, tanto lá como cá, são a matéria prima do delírio: “Eu gerei 18 filhas/ me tornei navegador”. O amor e o desejo empurram com força os personagens para o sanatório geral onde todos iremos ancorar.

O navegador Chico aponta seu barco para as águas mais profundas do romance, tentando superar a beleza sucinta da canção. Comprova, desafiando a própria obra, que um rio caudaloso raramente tem a beleza poética de um pequeno riacho.