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Ione Papas no foguete particular do samba

Por Daniel Brazil - 12/12/2007

Há muito tempo Ione Papas constrói uma das carreiras mais interessantes da música brasileira. A baiana, radicada em São Paulo desde 1992, consegue o feito raro de abordar sambas com um raro sentido de originalidade, que vai da escolha das músicas até a maneira de interpretar.

Depois do início de carreira tradicional, cantando em bares de Salvador, Ione estreou no palco do Teatro Vila Velha interpretando Noel Rosa, no show “Seu Garçon, faça o favor...”. Mais que uma cantora de standards, o que se via era uma pesquisadora empenhada em revelar a imensa e pouco conhecida obra do mestre de Vila Isabel.

Tal dedicação a levou ao programa “Sem Limite”, da extinta TV Manchete, onde respondeu sobre a vida e obra de Noel, vencendo todas as etapas. E em 2000 lançou o CD Noel por Ione (Dabliú Discos), onde mostrou as cartas que trazia na manga. Arranjos modernos, inventivos, ressaltando uma interpretação firme, contida mas expressiva, com um quê de inspiração em Aracy de Almeida, mas com um inconfundível e saboroso sotaque baiano.

O disco foi um espanto. Havia dixieland, fox-trot e baixo elétrico, mas o espírito de Noel, ora irreverente ora dolorido, estava presente em cada acorde. De quebra, Ione ainda trazia uma penca de gente boa junto com ela: de Quinteto em Preto e Branco até a viola de Miltinho Edilberto, passando por duos com Jussara Silveira e Simone Guimarães.

Mas a vida não é fácil pra quem foge do lugar comum, nesse planeta. Pouco tocada nas FMs, longe da televisão, Ione seguiu cantando para poucos privilegiados em vários cantos do país. Da quadra da Mangueira até os bares de Vila Madalena, mostrou que outros sambistas também cabiam no seu talento. Aliás, aborda outros gêneros também, com elegância e bom gosto.

Mas o samba acabou definindo o repertório do segundo CD (Na Linha do Samba, 2007, Dabliú), onde Ione mostra que é cachaça rara, de fino alambique. As características básicas permanecem: a busca de um repertório inusitado, a interpretação precisa e sem derramamentos, a variedade de timbres nos acompanhamentos, a perfeita integração com os músicos. O produtor Alexandre Fontaneli juntou no estúdio, entre outros, o talento do violonista Filó Machado, o trombone de Bocato, o ritmo envolvente do Quinteto em P & B, e a participação mais que especial de Fabiana Cozza, no delicioso dueto de Sonho Colorido de um Pintor (Talismã/ B. Lobo).

Vários sambistas baianos recebem aqui a devida atenção. De Tuzé de Abreu (Vestida de Malha), a Tito Bahiense (O Enterro do Samba), passando por Mário Leite (Pérolas de Carnaval) , Péri (O Samba é Bom), Manuca Almeida (Luz Acesa) e Doda Macedo (Infinita Beleza), além do grande Batatinha (Foguete Particular). E os cariocas Oswaldo Pereira (As Árvores) e Moacyr Luz marcam presença, este relembrando adequadamente Noel, Aracy e Clementina, em Saudades de Quem Te Ama.

O CD abre com um chiado de agulha no disco e termina com um rap, trajetória simbólica do samba desde seu batismo industrial. Com citações que vão do terreiro de candomblé até os manos do rap, Ione brinca, mas o recado é sério: “Só ponho hip-hop no meu samba, quando Tio Sam pegar no tamborim!”. A cantora pega o foguete da modernidade, mas com o tanque cheio de tradição. E assume com fervor os versos de Batatinha (com quem conviveu, em Salvador): “Numa prova de alegria, eu vou chegar sambando!”.