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Intrigantes canções de outono

Por Daniel Brazil - 03/07/2018

Outono no Sudeste. Nome estranho para um CD, para um conjunto de músicas às vezes desconcertantes? Para o mercado talvez tenha pouco apelo. Para Mauricio Pereira, um dos mais coerentes e consistentes cronistas musicais do Brasil contemporâneo, faz sentido. Como faz sentido para quem procura novas poéticas na canção popular deste conturbado século XXI.
Mauricio reafirma sua originalidade criativa, aprimorando um estilo que surgiu lá atrás, em 1985, com a segunda menor banda do mundo, Os Mulheres Negras. A carreira solo, iniciada dez anos depois com o CD Na Tradição, evidenciou um observador atento do cotidiano, dos detalhes, das pequenas coisas que nos cercam. Artista múltiplo e inquieto, Mauricio Pereira passeia pela cidade com olhos de cineasta, ouvidos de tuberculoso e sensibilidade de poeta, anotando em seu caderno as sensações e imagens que depois são trabalhadas até virarem música.
Outono no Sudeste coroa esse processo, e evidencia a maturidade estética do compositor. São doze canções, algumas autorais, outras escritas com velhos e novos parceiros. A banda formada por Tonho Penhasco (guitarras e violão), Henrique Alves (baixo), Gabriel Basile (bateria), Pedro Montagnana (teclados) e Amílcar Rodrigues (sopros, às vezes com a ajuda do próprio Pereira) produz uma sonoridade gostosa, variada e consistente. As vozes de apoio de Tim Bernardes, Chico Bernardes e Manuela Pereira reforçam os laços sonoros do clã.
As melodias são inesperadas e os ritmos variados, indo da balada jazzística ao samba-canção modernista. Mas é difícil disputar com o brilho das letras, sempre surpreendentes. “Pássaros nas mãos/ mãos de toda cor” diz a bluesy faixa de abertura, A Mais. “O ruído rosa de uma rosa inconformada/ que se sabe já ficando velha/ e aos poucos morta” sussurra Tudo Tinha Ruído, com uma arquitetura que lembra o sucesso Trovoa, mas com um final leminskiano.
As faixas seguintes mantém o clima de surpresa. Nada soa banal ou gratuito. A deliciosa Florida descreve uma musa “carnuda/ goiaba solta no ar”, cujos “olhos fazem tim-tim”. A funkeada Os Amigos proclama que “o coração é um órgão/ tocando numa capela lá longe”. Mulheres de Bengalas já surpreende pelo título. Sensível crônica musicada, uma das grandes canções do disco.
A faixa-título nos envolve como um fim de tarde paulistano, quente e sufocante. Gruda. “O ar está particularmente imundo hoje/ e isso deixa o por do sol ainda mais bonito.” O solo de trompete de Amílcar arrepia. Não Me Incommodity sai da atmosfera urbana e nos envia para um porto do outro lado do mundo, onde uma miragem surge no porão de um navio. Piquenique no Horto retoma o sotaque paulistano, com humor em voz feminina. “Hoje lavei toda a roupa/ no meu varal tem calcinhas.”
Quatro Dois Quatro entra em campo pra mostrar que futebol também é coisa de outono, época de Copa. Pereira consegue o feito de narrar alguns lances de futebol sem falar o nome de nenhum jogador. Pode?
Maldita Rodoviária é outro flash metropolitano, e as estrofes parecem haikais. “Gelo/ desespero/ nem se moveu pra me dar um beijo”. O pária da rodoviária acaba procurando “um abrigo em algum ônibus”. E a canção que encerra o disco verbaliza os sentimentos de uma pedra, acredite. “Sou só/ estou só/ fui criada solta à beira de qualquer caminho/ o pó da estrada é a minha maquiagem.”
Ao final da audição somos tentados a escutar de novo, tal a riqueza de imagens e sentidos. Aula de criação musical, repleta de influências trabalhadas de forma original, driblando com sabedoria o lugar comum. Mauricio Pereira, devagarinho, com aquele jeito de quem espia mulheres de bengalas pelas ruas, emplaca um dos grandes discos de seu tempo. De nosso tempo.