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Duda, o eterno moleque de rua

Por Daniel Brazil - 19/03/2014

Corria o início da década de 80. A música brasileira se fragmentava em diversos gêneros. O chamado rock brazuca invadia as rádios, os sertanejos começavam a invasão dos corações e mentes do povão, o pagode paulista vivia dias de glória. Nas quebradas da periferia fermentava o rap, o funk, o punk mulato, música de combate que denunciava as arbitrariedades de uma ditadura que perdia força política, mas mantinha a repressão contra a base da pirâmide social.
 

Na Vila Santa Catarina, bairro paulistano de classe média baixa, atrás do aeroporto de Congonhas, o bancário e estudante de direito Duda arregimentava a molecada da vizinhança para fazer um som na garagem. Na laje. Na rua. Sem grana, fabricavam instrumentos de lata. Muitos moravam nas favelas vizinhas, como a do Buraco Quente. Criavam temas, sugeriam letras, e Duda começou a escrever canções.
 

Em 1983 conseguiram gravar um compacto com quatro faixas. Tocavam em feiras, escolas, festas de bairro, domingueiras. O centro cultural mais próximo ficava no bairro do Jabaquara, e abrigou muitas apresentações dos moleques. Gravaram um clipe com a canção Herodes, premiado pela Secretaria de Estado da Cultura. E começaram a divulgar. A recém-nascida MTV lançava um concurso de clipes brasileiros, e o Moleque de Rua emplacou o primeiro lugar. A Globo farejou, e passou um trechinho no especial de fim de ano, com “futura promessa”.
 

O compacto caiu nas mãos de Charles Gavin, baterista dos Titãs, que resolveu produzir o primeiro LP. Sucesso de crítica, que sentia ali autenticidade e invenção. A estrada para o sucesso começava a se pavimentar, mas os moleques eram alternativos demais. Um morreu de bala, outros caíram nas drogas, um virou puxador de escola de samba (dos bons), outro virou evangélico...
Duda foi renovando o grupo, chamando novos integrantes. Um convite para fazer uma turnê na França foi providencial. O bando, visto no início como curiosidade antropológica, meninos do Terceiro Mundo tocando lata, ganhou personalidade. Tocaram em mostras, festivais e teatros. Rodaram a Europa, apresentando-se com artistas do porte de Naná Vasconcelos e Gilberto Gil.
 

Novo disco gravado, novas mudanças de formação. Os moleques de rua viraram homens da estrada. A entrada do guitarrista Osvaldinho estabilizou o núcleo criativo do grupo. No entanto, continuavam alternativos. Passaram a disputar com centenas de bandas de periferia um lugar ao sol, mas sem o diferencial do início. Não eram mais moleques...
Trinta anos se passaram. Cinco discos, várias formações. Em 2013 Duda gravou seu primeiro CD solo (acompanhado por vários Moleques de Rua, claro). Em março de 2014 lançou o portal do grupo, com fotos, textos e faixas para serem baixadas (www.molequederua.com.br). O disco Bicho da Selva Paulistana está ali, na íntegra. Um punhado de canções urbanas e provocativas que mantém a irreverência dos primórdios, com a produção profissional dos novos tempos. Sambas, funks, reggaes, forrós, pagodes, baladas e até marchinhas de carnaval. Duda, careca e de barbas brancas, mostra que sua inspiração continua moleque, avesso às regras de “bom gosto” ditadas pelo mercado.
O sotaque paulistano é nítido na voz do quase-advogado. Mas versos como “os heróis ajoelharam-se na lama pra dizer amém” (Pão e Circo) mostra que o inconformismo e a inspiração permanecem vigilantes. Como não lembrar destas palavras depois de ler as manchetes dos jornais?