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As delicadezas do samba

Por Daniel Brazil - 11/07/2019


Fabiana Cozza, cantora consagrada, há muito tempo cultuava a obra de Dona Ivone Lara, sambista maior que nos deixou em 2018. Com sua voz forte, de timbre original e bem definido, atentou para a delicadeza melódica da grande compositora do Imperio Serrano, e também para a poética de seus parceiros favoritos, a começar por Délcio Carvalho.
Convidada a estrelar uma peça musical em homenagem à mestra, foi envolvida num infeliz episódio de preconceito, devido à sua “pele clara”. Além disso, é paulistana e tem sobrenome italiano, coisa que não é bem assimilada na antiga capital federal desde o tempo de Isaurinha Garcia.
Fabiana assimilou o golpe com elegância, e continuou tocando seu projeto pessoal. Em parceria com o ótimo violonista Alessandro Pennezzi, fez vários espetáculos com o repertório de dona Ivone, e o resultado acabou virando álbum, lançado pela Biscoito Fino em 2019.
Por trás de um sorriso desenhado por Elifas Andreato, uma preciosa coleção de canções é apresentada de forma segura por alguém que conhece música e poesia, e demonstra isso com propriedade. Valorizando climas intimistas, expandindo-se em momentos iluminados, e dividindo no momento certo os holofotes com vozes como a de Maria Bethânia (Alguém Me Avisou) e Péricles (Adeus Timidez), Fabiana desfila melodias menos conhecidas e até a canção-homenagem A Dama Dourada, parceria de Hermínio Belo de Carvalho e Vidal Assis, valorizando detalhes e enriquecendo ainda mais o tesouro deixado pela sambista. Com toques precisos da percussão de Douglas Alonso e o cavaco e bandolim de Henrique Araújo, o samba de câmara mostra toda sua grandeza.
Curioso que o título do disco é verso de um dos mais conhecidos sambas de Dona Ivone (“canto na noite na boca do vento”, de Sonho Meu), mas não foi gravado. É como se Fabiana chamasse a atenção das pessoas para o outro lado, para um dimensão ainda inexplorada da obra imensa da enfermeira que se tornou compositora. E faz com isso um dos grandes discos de música brasileira do ano. E, até agora, do século.