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Culinária musical

Por Daniel Brazil - 04/03/2009

O assunto surgiu em torno de uma peixada regada a samba, e acabou tomando conta da noite. Quando a música popular começou a falar de comida? Ou melhor, quando a comida virou tema na música popular brasileira?

Perguntinha difícil de responder. O samba nasceu dum batuque na cozinha, e o couro comia solto antes e depois do regabofe. Todos lembram de alguma referência, de alguma melodia temperada, de algum samba-receita.

Samba-receita é um gênero? Não chega a tanto, mas gerou obras primorosas de mestres-cuca como Dorival Caymmi (Vatapá) e Chico Buarque (Feijoada Completa). Poucos compositores chegaram a detalhes técnicos tão explícitos quantos estes dois apreciadores de um bom prato.

Feijoada, aliás, é um clássico. Que o diga Paulinho da Viola, que provou do famoso feijão da Vicentina, no Pagode do Vavá. O grande Braguinha transmitiu a várias gerações a receita de feijoada do casamento da Baratinha, onde acabou sucumbindo o Doutor João Ratão: “Feijão, carne-seca, lingüiça mineira, orelha de porco pra dar e vender! Toucinho fresquinho, toucinho gostoso, toucinho cheiroso pra gente comer!”

Mas nem só de feijoada vive o brasileiro. O cardápio é extenso no cancioneiro pátrio. Carmen Miranda, acusada de ter voltado americanizada em 1940, se defendeu cantando que “na hora da comida, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”.

Carmem só confirmou que frutos do mar sempre estiveram na comissão de frente da mesa brasileira. Pudera, com tanta praia, tanto peixe e tanto compositor, o negócio tinha de dar samba. Candeia mostra, em Peixeiro Granfino, que “salsa, pimenta de cheiro, faz bom tempero, azeite de dendê”. Aldir Blanc (com João Bosco) conta toda uma saga em busca de um Siri Recheado e o Cacete. A moqueca, seja baiana ou capixaba (ou seja, com ou sem dendê), foi cantada de diversas maneiras.

Minas Gerais não tem mar, mas o mineiro Milton Nascimento sabe que “peixe bom dá no riacho”. Sá e Guarabyra louvaram o Pirão de Peixe com Pimenta das margens do São Francisco, acompanhado de uma boa januária. Milton também exalta as especiarias em Cravo e Canela. Ê, morena, quem temperou?

Aliás, os doces marcam presença no repertório. Do doce de coco de Jacob do Bandolim ao alfenim de Delcio Carvalho, passando pela goiabada cascão de Wilson Moreira e Nei Lopes, tem muito doce cantado por aí. Ary Barroso elogiou os Quindins de Iaiá, cozinheira tão famosa que o próprio Nei Lopes fez questão de homenagear em O Tempero de Iaiá. Tim Maia, como sabemos, só queria Chocolate.

O tradicional churrasco, outra preferência nacional, está em tantas letras de música, principalmente sertanejas e regionais, que dá até enjôo. Entre os gaúchos, a combinação é quase obrigatória. Aliás, os caipiras de verdade sempre fizeram questão de exaltar os pratos da terra, como o Leitão à Pururuca de Lourenço e Lourival, que também prepararam um Franguinho na Panela, cantado por Tião Carreiro e Pardinho. Tonico e Tinoco cantaram a saudade do Arroz a Carreteiro. O grande Luiz Gonzaga, além de enumerar as delícias de Feira de Caruaru e mostrar como se faz um Baião de Dois, lembrou com muito gosto da comida paraense em Tacacá.

O trivial variado está presente em todas as mesas. Martinho da Vila elogia a Comida da Filó (Vai ter bife de panela com polenta e aipim/ Quero provar o jiló e a berinjela/ Tô sem pressa, sou assim). Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro não esqueceram da proletária marmita, que traz um Torresmo à Milanesa como “sustança”. Zeca Pagodinho diz que não conhece Caviar, e é mais “ovo frito, farofa e torresmo”. Cartola já reclamava que não é possível “cozinhar sem banha, sem cebola e alho, sem vinagre e cheiro” (Como É que Eu Posso).

Pratos menos corriqueiros foram cantados por Geraldo Pereira (Cabritada Mal Sucedida), João do Vale (Peba na Pimenta – peba é tatu, prato proibido pelo Ibama mas apreciado em todo o Brasil) e o grupo satírico Língua de Trapo, que sugere, numa cantina italiana, “filé a parmegiana com catuaba, arroz e pão”, acompanhado de ovos de codorna e sobremesa de tutano. (Tragédia Afrodisíaca). Nem a Concheta enfrentaria um cardápio desses!

O reincidente (e bom garfo) Nei Lopes, pra testar a nova cremalheira, anunciou para os amigos “carne de terceira’ e “tartaruga em fatia” (Festa da Dentadura). Aliás, o quelônio faz parte no cardápio cantado por Walter Alfaiate, no Prato do Dia (de Felipão do Quilombo): “Camarão frito na manteiga/ e tartaruga em fatia”. Nei lembra também da moqueca de fato que Idalina preparou, que mais parece um sarapatel.

Quem mergulhou fundo no tema foi a dupla mineira Célia & Celma. Além de escrever um livro com cheiro de fogão a lenha (A Cozinha Caipira de Célia e Celma), lançaram um CD com receitas musicadas, em vários ritmos. Vaca Atolada, Tutu de Feijão, Canjiquinha com Costelinha, Pé de Moleque.... Sim, são nomes de músicas, vale a pena conferir! Tem xote, samba, moda de viola, xaxado e até tarantela (Bolinho de Macarrão).

A dupla de artistas mineiras tem uma contrapartida maranhense: os músicos-gourmets Wellington Reis e José Ignácio, que lançaram um CD com receitas cantadas da culinária maranhense. Traz músicas-receita como Peixe ao Escabeche na Costa da Mão, Cuxá Orquestrado, Peixe Frito no Samba, Sururu Chorado no Leite de Coco, Caruru Mina-Jeje Divino Doce de Calda Cacuriado no Crioula, entre outras. De dar água na boca!

Até nas capas dos discos, no tempo em que o formato LP dava espaço para a criatividade, a comida esteve presente. Quem não se lembra do disco de estréia de Luiz Melodia, cercado de feijão preto? Ou dos Secos e Molhados servidos à mesa? Ou o Banquete dos Mendigos, com Macalé recebendo os amigos para a santa ceia? Macalé, aliás, se apresentou num festival comendo rosas enquanto cantava...

Tia Ciata, cozinheira de mão cheia e primeira-madrinha do samba, inaugurou a mistura. De lá pra cá, o cardápio só ficou mais rico e substancioso. Paulo César Pinheiro, em parceria com Joyce, decretou que “no samba tem que estar de olho/ É preciso dosar tempero e molho” (Receita de Samba). Afinal, como bem disse Vinicius, para viver um grande amor é importante conhecer a harmonia das panelas:

“E o que há de melhor que ir pra cozinha
E preparar com amor uma galinha
Com uma rica e gostosa farofinha
Para o seu grande amor?”