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Chico Saraiva, tripulante d’A Barca

Por Daniel Brazil - 12/07/2006

Um dos núcleos musicais de maior excelência em atividade no Brasil é aquele que se constitui em torno do grupo A Barca.

E porque não dizer logo “melhor grupo”, em vez de “núcleo”? A resposta está na somatória dos discos e apresentações do grupo com os trabalhos individuais (ou com outras formações) de cada membro. O conjunto é tão rico que causa espanto que ainda não tenham um maior reconhecimento por interessados em música e cultura popular de todo o mundo.

Formado em 1998, A Barca inspirou-se em Mário de Andrade para se mergulhar dentro do imenso torvelinho de ritmos que formam a correnteza musical brasileira. O primeiro disco do grupo, Turista Aprendiz, refez a trajetória musical do mestre, coletando temas populares e folclóricos de todo o país. Mais que uma simples amostragem, os delicados arranjos, a instrumentação virtuosa e vozes envolventes transformaram aquelas peças singelas em uma suíte de beleza absoluta, que emocionou públicos em mais de 50 cidades de todas as regiões do país.

O segundo disco, Baião de Princesas, é um mergulho profundo nas raízes africanas da nossa cultura, gravado em conjunto com as vozes rituais da Casa Fanti-Ashanti, um histórico terreiro de São Luiz do Maranhão. Cantos de impacto imediato, sublinhados musicalmente por pequenas e reverentes intervenções que realçam a beleza original de cada peça.

No final de 2004 eles embarcaram para mais uma viagem etnomusical, passando por nove estados, a partir do Pará. Contatando grupos locais, coletando músicas e fazendo apresentações, retornaram a São Paulo com um rico material, que em janeiro de 2006 foi lançado numa caixa com 3 CDs e um DVD: Trilha, Toada & Trupé. Nas redes da Barca, mais uma pescaria produtiva, riquíssima em formas e ritmos, que eles repartem com generosidade em suas apresentações.

Como se não bastasse esta enorme contribuição, os talentosos membros do grupo esparramam sua musicalidade em várias direções. O grande cantor Marcelo Pretto, integrante do Barbatuques e talentoso solista; o pianista e arranjador Lincoln Antonio, que gravou desde duetos (com Ney Mesquita) até um importante resgate de sambistas de Santos, sua cidade natal (Cavalo de Praia); o grande violinista-rabequeiro Thomas Roher; a cantora Juçara Marçal e as belas vozes femininas; os percussionistas!

Um tripulante merece destaque: o violonista Chico Saraiva. Seu inspirado talento já havia sido demonstrado no excelente disco instrumental Água, lançado em 1999. O Prêmio Visa Compositores, conquistado em 2003, confirmou a extrema musicalidade deste carioca que cresceu em Florianópolis, estudou música em Campinas e mora em São Paulo desde 1995.

O disco Trégua, seu primeiro disco de canções, foi lançado em 2003, sendo imediatamente aplaudido. Melodias tão ricas, tão carregadas de poesia que mesmo contando com diversos letristas formam um conjunto coeso, de grande lirismo. Chico convidou várias vozes para o trabalho: Ceumar, Ná Ozzetti, Ana Luiza, Luciana Alves, Ney Mesquita, Teresa Cristina e Simone Guimarães, além dos colegas “barqueiros” Juçara Marçal e Marcelo Pretto.

Beleza cristalina filtrada por várias clivagens, Trégua é uma jóia única na vitrine musical brasileira. Mas como é quase impossível juntar todas estas vozes para mostrar o trabalho nos palcos, Chico escolheu mais uma parceira, a jovem Verônica Ferriani, conhecida nas rodas de samba do Traço de União e do Ó do Borogodó, em Sampa. Junto com o baixista Ricardo Zoyhio, recriou as canções do último disco, adicionando novas composições. Seu mais recente parceiro atende pelo nome de Paulo César Pinheiro, o que dá uma idéia da qualidade do trabalho apresentado.

Verônica surpreende, e desponta como grande cantora revelando sutileza e perícia nas difíceis acrobacias vocais que Chico desenha. O trio sai agora de São Paulo e começa a circular pelo Brasil, começando pelo Rio de Janeiro. Ouçam e confiram: Talvez só o carioca Guinga esteja hoje no mesmo patamar de Chico Saraiva. E Tom Jobim certamente deve estar sorrindo por ter um discípulo tão merecedor de sua herança musical.