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Cartola e a nova ortografia

Por Daniel Brazil - 16/02/2009

Todo o tempo que eu viver
Só me fascina você, Mangueira...

Assim se inicia um dos belos sambas de Cartola, Fiz Por Você o Que Pude, feito em homenagem à escola da qual foi fundador. Com a riqueza de imagens que lhe é habitual, o compositor declara seu amor num samba que acabou se tornando um clássico do repertório mangueirense.

Mesmo assim, contam que Cartola ficou muito chateado quando alguns amigos, no estúdio de gravação, apontaram um erro na segunda parte da letra. Tentou corrigir ali mesmo, mas foi convencido a não alterar a canção, de profunda sinceridade. Dizem que até deixou até de cantá-lo por algum tempo, com vergonha da flexão tortuosa do verbo “premiar”.

Perdoa-me a comparação
Mas fiz uma transfusão
Eis que Jesus me premeia
Surge outro compositor
Jovem de grande valor
Com o mesmo sangue na veia.

O verso causa discussões até hoje. Aventaram a hipótese de que o verbo seria “permear”, e não “premiar”, o que não faz muito sentido, e também estaria errado. Historiadores e pesquisadores se dividem entre aplaudir a ousadia estilística e lamentar o erro.

Erro? Pois o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que começa a ser implantado em 2009, dá razão a Cartola! Embora pouco usada no Brasil, a forma “premeia” existe em outros países da comunidade lusófona. A partir do acordo, são válidas as formas negocio ou negoceio (de negócio), noticio ou noticeio (de notícia), calunio ou caluneio (de calúnia) e premio ou premeio (de prêmio).

Segundo Mauricio Silva, doutor em Letras pela USP e especialista em ortografia, “trata-se de uma das regras mais polêmicas, em razão da indefinição das bases do Acordo e da grande variedade de pronúncias em Portugal e no Brasil”. E nos países africanos, poderia acrescentar.

De qualquer modo, se o velho Cartola vivo estivesse, tiraria um peso da alma e sorriria feliz. O Acordo premeia sua poesia, reconhecida (aqui sim, de forma unânime) como uma das mais originais e belas da música popular brasileira.