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A afrodescendência da canção nas Américas

Por Marcio Paschoal (*) - 11/04/2015

O timbre grave na voz do cantor Maurício Luz é a marca registrada neste CD “Ritos e Ritmos”.

Já faz tempo que um grupo vocal se sobressaiu no cenário nacional explorando esse registro de baixo, os Cantores de Ébano.

De lá para cá, outras vozes de barítono fizeram a alegria dos ouvintes, coincidentemente negros, como Nat King Cole, Paul Robeson, entre outros.

Tentando fugir desse aparente clichê, o carioca Maurício Luz, enveredou pelo canto lírico. Formado pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estreou como solista na ópera Porgy and Bess, no Municipal. Outros trabalhos vieram, com destaque para Carmen de Bizet (no papel de Zuniga) e na clássica de Mozart, Bodas de Fígaro (como Bartolo).

Maurício, aproveitando o timbre, também empresta sua voz em dublagens de vários desenhos e filmes, notadamente da Dreamworks e estúdios Disney (O Rei Leão, A Bela e a Fera etc).

O repertório do CD é calcado nas sad songs dos tempos da escravidão, quando os lamentos ritmados em forma de canções ganhavam as lavouras do sul dos Estados Unidos escravocrata. Nesse caso vicejava o cristianismo como moldura para a cultura africana, numa espécie de colonização cultural.

Um dos melhores exemplos é a canção que abre o disco “Go Dowm Moses”, a tradicional “Let my people go”. Excelente interpretação. Mais triste e com caráter lenitivo, outro marco desse cancioneiro americano, a “Ain’t got time to die” (Senhor, estou ocupado louvando meu Jesus/ não há tempo para morrer/ porque a doença se vai quando estou a louvar Jesus/ não há tempo para morrer”).

A ótima “I want Jesus to walk with me” inspirou a quase herética, a stoniana de Exile on Main St, em “I don’t want to talk about Jesus, Just wanna see his face”.

O rio Jordão, devido à cristianização, também é fortemente evocado, como na bela “Deep River” (Rio profundo, meu lar está no Jordão...). O rio em que Baptista batizou Jesus serve como abrigo espiritual, a terra prometida onde tudo é paz.

Depois da série dos spirituals, Maurício, acompanhado do piano (Eduardo Henrique) e contrabaixo acústico (Ricardo Cândido), envereda pelas canções brasileiras. O ritmo é marcado pela riqueza em atabaques e outros elementos percussivos a cargo de Paulo Bogado e Eliseu Costa. Algumas faixas com mais acerto que outras. Os mestres Hekel Tavares e Waldemar Henrique foram os escolhidos. “Funeral de um rei nagô”, “Hei de seguir os teus passos” e “Perdão Abaluiaê” sobressaem.

Maurício já tem estrada, principalmente na esfera operística. Sua gravação do Réquiem (Padre Maurício) ganhou o elogio e o respeito dos críticos, e o poema sinfônico de Antonio Carlos Gomes “Colombo” levou-o ao Prêmio Sharp (1999).

“Ritos e Ritmos” mostra a influência inegável da cultura africana na América e traz luz (sem trocadilho) ao talento desse excelente operário do canto.

(*) escritor, autor da biografia de João do Vale.