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Afrobrasilidades

Por Daniel Brazil - 13/08/2014

Um dos projetos mais interessantes de pesquisa sobre música brasileira disponíveis na internet é o Goma-Laca (www.goma-laca.com), fruto do empenho de Biancamaria Binazzi e Ronaldo Evangelista, garimpeiros de tesouros musicais da primeira metade do século XX. Vasculhados no acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, velhos discos de 78 rotações renascem digitalizados, e podem ser novamente apreciados por musicólogos, estudantes, pesquisadores ou simplesmente amantes de nossa música popular.

Abre parêntesis: a musicóloga Oneyda Alvarenga foi aluna e colaboradora de Mario de Andrade. Responsável pela guarda de seu precioso acervo, tornou-se referência nos estudos etnográficos de música no Brasil. A coleção iniciada pelo mestre, hoje abrigada no Centro Cultural São Paulo, leva o seu nome. Fecha parêntesis.
O lançamento do CD Goma-Laca, vol. 1, em 2012 (http://www.goma-laca.com/volume-1/) apontava um novo caminho estético na história da musicografia nacional. Não se limitava a limpar e reproduzir velhos fonogramas. Também não propunha juntar músicos e copiar os arranjos originais, compasso a compasso. Com músicos e arranjadores contemporâneos, recriou as peças originais com a participação de nomes que arrepiaram os espíritos mais conservadores: o rapper Emicida, os renovadores do grupo Sambanzo (Kiko Dinucci, Thiago França, Marcelo Cabral, Samba Sam, Pimpa) e as vozes heterodoxas de Luisa Maita, Juçara Marçal, Marcelo Pretto, Bruno Morais e Rodrigo Brandão.

Pesquisa vai, pesquisa vem, logo perceberam que havia material para muitos discos e shows. Fecharam o foco no tema Afrobrasilidades, impressionados com a quantidade de motivos afro-brasileiros rituais e religiosos que foram gravados em 70 rpm e praticamente esquecidos. Um ou outro ainda ecoam em versões contemporâneas, e é um prazer reconhecer certas cadências e versos.
As gravações originais tinham as vozes de Vanja Orico, Jararaca e Ratinho, Josué de Barros, Filhos de Nagô e Stefana de Macedo, além de alguns anônimos. Para a recriação, novamente juntaram um time de arromba: as vozes de Juçara Marçal, Karina Buhr, Russo Passapusso e Lucas Santtana, com direção musical e arranjos do maestro Letieres Leite (Orkestra Rumpilezz).

Extrapolando o aspecto musicológico, o resultado do CD Afrobrasilidades, é fascinante. Jongos, capoeiras, emboladas, toadas e pontos de candomblé são recriados com todos os recursos que a tecnologia eletrônica e digital permite, com direito a ousadias timbrísticas como um órgão elétrico na clássica Minervina (mais conhecida como Lua Girou, regravada por Milton Nascimento no álbum Geraes, de 1976). Outra delícia é reconhecer a citação que Tom Jobim fez de Do Pilá na canção Boto (em parceira com Jararaca, não por acaso nascido em Pilar, AL). Sabe-se lá se os versos são do Jararaca ou do folclore alagoano...

O mais bacana é que o CD, o encarte e todas as informações podem ser baixados de graça no endereço do Goma-Laca. Aliás, pra quem estranhou o nome, goma-laca era a matéria prima indispensável – junto com a cera de carnaúba - para a produção das velhas bolachas de 78 rpm. Substituídas gradativamente pelo LP de vinil, viraram peças de museu.

O projeto Goma-laca demonstra que há muita brasa sob as cinzas desse fantástico acervo. Muito do que se ouviu (e um pouco do que se ouve) nos melhores momentos da música popular contemporânea está ali, in nuce. Coletâneas estimulantes como o CD Africanidades comprovam, mais uma vez (como se necessário fosse!) que a música popular brasileira é uma das mais ricas do planeta. Basicamente, porque bebeu de fontes ancestrais e misturou de maneira única as virtudes de África, Europa e América indígena, gerando uma multiplicidade de formas e gêneros que nenhuma outra nação conseguiu.

Longa vida à Goma-laca, e que renda outros frutos, tão saborosos quanto esse!